REVISTA FACTO
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Mai-Ago 2022 • ANO XVI • ISSN 2623-1177
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Um novo CEIS, mais forte e capaz
//Setorial Saúde

Um novo CEIS, mais forte e capaz

Uma das consequências da pandemia de covid-19 foi trazer à tona o debate sobre o complexo industrial de saúde instalado no País. No auge da crise, a sociedade brasileira sentiu os reflexos da sua dependência por insumos farmacêuticos produzidos no exterior. Essa situação de insegurança nacional fez com que o Brasil avaliasse seu parque industrial e decidisse estimulá-lo.

O Projeto de Lei nº 1505/2022, de iniciativa do senador Eduardo Gomes (PL/TO), estabelece mecanismos de estímulo ao fortalecimento do Complexo Econômico e Industrial da Saúde (CEIS) no âmbito da Política Nacional de Inovação Tecnológica em Saúde. A meta é criar uma fundamentação legal que estimule o desenvolvimento científico e tecnológico e promova maior articulação entre os integrantes do setor de saúde – Governo, centros de pesquisa, universidades e iniciativa privada.

A forma mais eficaz de enfrentar situações de crise como a criada pela inesperada pandemia é construir um ecossistema robusto e capaz de criar soluções em pouco tempo. Para tal, é necessário investir em capacitação científica e tecnológica e isso só acontece em ambientes favoráveis, com sólidos fundamentos jurídicos, que proporcionem a segurança necessária.

“Foi o que o Brasil fez com a estruturação do CEIS”, conta Carlos Grabois Gadelha, atual coordenador do Centro de Estudos Estratégicos Antonio Ivo de Carvalho (CEE/Fiocruz). “No período em que fui secretário de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde, uma das ferramentas que viabilizamos foram as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs). Para mensurar sua importância, basta verificar que as duas vacinas para covid-19 produzidas no País, pela Fundação Oswaldo Cruz e pelo Instituto Butantan, são resultado de plataformas tecnológicas oriundas deste mecanismo. Centenas de milhares de vidas foram salvas graças ao fruto dessa base tecnológica, que nos permitiu absorver tecnologia e promover política envolvendo a articulação do Estado com o setor privado, mas sempre tendo em vista o interesse público”.

Mas ainda há muito a ser feito, alerta o senador Ogari Pacheco (União/TO), apesar da Constituição Federal, nos artigos 218 e 219, estabelecer como dever do Estado a promoção e o incentivo ao desenvolvimento científico, à pesquisa e à capacitação tecnológica. “Na prática, ainda não há um alicerce legal que garanta um ambiente propício para o desenvolvimento científico e tecnológico no País, o que reflete na forma como a indústria farmacêutica e farmoquímica está estruturada no Brasil. O Projeto de Lei nº 1505/2022 pretende oferecer esse arcabouço jurídico e mudar esse cenário”.

Segundo ele, o Brasil ainda sofre por depender da indústria internacional, como no caso dos Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs). O País importa 95% do que é preciso para a produção de medicamentos. “A insegurança que isso traz para a saúde pública ficou clara durante a pandemia da covid-19, que obrigou as indústrias a montarem uma verdadeira operação de guerra para produzir insumos e medicamentos necessários para abastecer os hospitais enquanto a demanda mundial sofria um aumento sem precedentes. Durante a emergência sanitária da covid-19, ficou bem claro que os países que investiram em capacitação científica e tecnológica ao longo dos anos foram capazes de responder de forma mais rápida e eficiente à emergência”, afirma Pacheco. Para Gadelha, é lamentável enfrentarmos problemas de abastecimento de dipirona, paracetamol e antibióticos clássicos, como amoxicilina. “Temos que voltar a produzir IFAs tradicionais, inclusive de base química, ao mesmo tempo em que avançamos em plataformas tecnológicas inovadoras”, defende ele.

Sergio Frangioni, diretor geral da Blanver Farmoquímica e Farmacêutica, acredita que o aprendizado trazido pelo coronavírus confirmou a alta dependência de produtos de saúde vindos do mercado internacional. “A tendência é que o CEIS venha a considerar áreas primordiais para sua atuação e estruturar melhor plataformas com soluções mais aderentes às demandas do Sistema Único de Saúde (SUS) e dos parceiros públicos e privados, a fim de trazer para a agenda projetos de inovação radical e pesquisas no País”.

Frangioni enfatiza que os governos deveriam entender que as PDPs possuem papel central na capacitação tecnológica e são instrumentos de fomento da indústria nacional que ajudam a reduzir as atuais vulnerabilidades do SUS. “Para garantir a segurança jurídica dos parceiros públicos e privados nestas contratações, é essencial trazer mais previsibilidade nos termos de fornecimento, considerar o valor agregado da transferência tecnológica durante as negociações de preço, proporcionar isonomia fiscal para os projetos locais, apoiar juridicamente o uso exclusivo do IFA depois de nacionalizado e manter a regularidade para publicação dos novos produtos de interesse do SUS para novas PDPs”.

“Temos que voltar a produzir IFAs tradicionais, inclusive de base química, ao mesmo tempo em que avançamos em plataformas tecnológicas inovadoras”

Carlos Grabois Gadelha

Para a professora associada e coordenadora do Grupo de Economia da Inovação do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (GEI/IE/UFRJ) Julia Paranhos, as políticas explícitas para Ciência, Tecnologia e Inovação (CTI) implementadas entre 2003-2016 com foco na área do CEIS foram acertadas, ainda assim, elas se mostraram frágeis frente à mudança de Governo e de direcionamento político. “Precisamos de mais clareza na definição das prioridades de saúde no direcionamento das políticas industriais e de CTI, da introdução de avaliação e monitoramento das políticas em produção, inovação e saúde, de ações direcionadas às pequenas empresas de base tecnológica, em especial biotecnologia, de maior participação da sociedade civil nos fóruns de debate, principalmente no Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (GECIS) e de coordenação de políticas explícitas e implícitas, como a macroeconômica, comercial, tributária, e das diversas dimensões regulatórias que afetam a produção e inovação na IFB. Outro ponto é a regularização das Encomendas Tecnológicas e Medidas de Compensação na área da saúde, que foram incluídas no Decreto nº 9.245/17, mas ainda não estão regulamentadas”, enumera a pesquisadora.

Gadelha, da Fiocruz, diz que as políticas para o CEIS devem ser vinculadas ao compromisso de fortalecer o País no núcleo tecnológico da saúde, que envolve fármacos, dispositivos eletrônicos e inteligência artificial. Isso nos permitiria participar do mundo da inovação e da fronteira tecnológica em saúde.  “E sem esquecer de doenças negligenciadas, de nossas populações vulneráveis, voltando a produzir medicamentos básicos”. Do ponto de vista institucional, o desafio no fortalecimento do CEIS é garantir ambiente propício, avançando na discussão com os órgãos de controle, para que os gestores possam exercer suas funções com segurança. “Se não fosse a decisão da presidente da Fiocruz de comprar, via encomenda tecnológica (ETEC), 100 milhões de doses de uma vacina que até então não existia, correndo todo o risco de um produto ainda em desenvolvimento, talvez tivéssemos mais 300 mil pessoas atingidas de modo fatal pela covid-19. Temos que garantir ambiente institucional propício para que o gestor público possa assumir riscos em nome do acesso a produtos fundamentais para o SUS”, insiste Gadelha.

Ele também destaca o exemplo do Instituto Butantan. A princípio, a intenção do Governo era adquirir vacinas contra gripe diretamente do fornecedor internacional, sem envolvimento do Butantan. “Se tivéssemos feito isso, hoje o Butantan não saberia fazer a Coronavac contra a covid-19. Investir em biotecnologia em parceria com empresas privadas foi um risco assumido, mas também foi uma aposta no futuro”.

“Durante a emergência sanitária da covid-19, ficou bem claro que os países que investiram em capacitação científica e tecnológica ao longo dos anos foram capazes de responder de forma mais rápida e eficiente à emergência”

Ogari Pacheco

Entre os especialistas, não há dúvida de que é preciso vontade política e instrumentos eficazes para buscar a ampliação de investimentos nas áreas de pesquisa e desenvolvimento (P&D) e para promover o desenvolvimento de novas tecnologias e estimular a produção nacional. O desmonte recente de mecanismos voltados para as atividades de P&D, como a Subvenção Econômica, prejudica o desenvolvimento nas empresas. “Se as empresas pararem de investir, os investimentos anteriores podem ser perdidos e os resultados almejados nunca serão alcançados, devido à natureza cumulativa do conhecimento”, avisa Julia Paranhos. “A constante mudança de estruturas, orientações e personificação das propostas implementadas gera desperdício de recursos e aversão a investimentos em P&D pelas empresas. Em síntese, é necessária atuação sistêmica e construção de políticas para alcançar objetivos amplos de desenvolvimento produtivo, inovativo e social”, resume.

A professora da UFRJ aposta no poder de compra estatal, por meio do SUS. A ideia não é simplesmente aumentar o número de PDPs, mas estimular suas formas alternativas, como as relacionadas às demandas de saúde de curto e longo prazo, que envolvam não somente grandes empresas, mas também pequenas e startups. “A estratégia deve estar explicitamente articulada aos demais instrumentos do do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e da Finep, assim como aos trâmites da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Instituto Nacional da Propriedade Intelectual (INPI)”.

Para Frangioni, da Blanver, o uso da capacidade de aquisição do Estado é essencial. Segundo ele, um dos desafios é direcionar a força das compras públicas de forma a reconhecer e induzir a inovação e a capacitação científica e tecnológica do parque industrial nacional. “Iniciativas desse tipo são fortemente dependentes de fontes de financiamento, sendo fundamental o acesso aos instrumentos de subvenção e empréstimos com este destino”. Gadelha corrobora: “temos que reforçar, como elemento central, decisivo para a inovação, a garantia de mercado pela força do Governo. A produção de ventiladores no ano passado é um exemplo: eles estão sendo subutilizados hoje. É preciso dar horizonte de mercado a quem acredita e começa a produzir no Brasil”.

Mas o coordenador do CEE/Fiocruz faz uma ressalva: as decisões devem manter o firme compromisso com o SUS. “Sou contra usar poder de compra do Estado para produtos que não sejam estratégicos para o SUS. Benefícios, incentivos fiscais, incentivos tributários, só se forem para o sistema público. O resto é papel do mercado. Tendo o SUS como norte, o importante é garantir estabilidade após a conclusão dos processos, compra com preços justos, monitorados e avaliados, compatíveis com os valores internacionais”.

De que forma a cadeia produtiva de base pode ser fortalecida por meio das PDPs? Para o senador Ogari Pacheco, tudo começa com a criação de um marco legal que dê segurança a quem investe em pesquisa e inovação. Como exemplo, ele cita o caso dos registros sanitários, dispensados para os IFAs importados, mas cobrados dos nacionais, obrigados a cumprir diversas exigências. “É uma distorção que não faz sentido e que privilegia a importação em detrimento da indústria nacional. Outro ponto que precisa ser revisto é a carga tributária incidente sobre produtos essenciais à saúde”.

Sergio Frangioni ressalta que os laboratórios oficiais, em detrimento da Lei 8.666/1993, realizam pregões e contratações de IFAs produzidos no exterior, visto que a indústria nacional não consegue competir em termos de preço com fabricantes asiáticos, por exemplo. “A falta de perspectiva de fornecimento é, sem dúvidas, o centro do problema atual. O grande fantasma na indústria é investir no desenvolvimento do IFA sabendo que, após a terceira fase da PDP, não haverá mais fornecimento. Muito raramente o retorno de investimento de uma planta para esta produção se dará em menos de cinco anos e, até o momento, este assunto tão crítico não encontra interlocutores ou perspectiva de adequação no marco regulatório”.

O coordenador do Centro de Estudos Estratégicos Antonio Ivo de Carvalho (CEE/Fiocruz) destaca uma questão crucial e de grande importância para a ABIFINA: depois que as PDPs e as transferências de tecnologia são concluídas, é necessário continuar o estímulo da produção feita no País, em contraposição à importação do produto. “Do contrário, faço uma PDP, ela é bem-sucedida, mas, quando começo a internalizar a tecnologia, não tenho mais garantia de mercado. Temos que ter a coragem de fazer o que os Estados Unidos fazem hoje, assim como a França, a Alemanha e a China: se é produzido no Brasil, tem que ter prioridade nas compras públicas. Isso é muito importante para as empresas envolvidas”, explica Gadelha.

“É necessário definir IFAs e medicamentos estratégicos, atentar para barreiras concorrenciais e focar nas diferenças nos vários níveis da regulação sanitária
dos países da região”

Julia Paranhos

Para Julia Paranhos, são necessárias políticas específicas para desenvolver a indústria localmente e reduzir a dependência externa na produção de medicamentos e possibilitar a geração de produtos e processos inovadores mais complexos na indústria farmacêutica por meio de atuação conjunta com a farmoquímica. “Além disso, devemos pensar na integração do mercado latino-americano como um todo e do Mercado Comum do Sul (Mercosul), como forma de ganhar escala para produções locais, estimulando o fortalecimento da produção e a redução do preço. É necessário definir IFAs e medicamentos estratégicos, atentar para barreiras concorrenciais e focar nas diferenças nos vários níveis da regulação sanitária dos países da região”.

Regulamentação adequada e disponibilidade de fontes de financiamento são importantes, mas não bastam. Segundo Gadelha, o CEIS possui demanda significativa relacionada à área da educação, pois o setor de saúde exige trabalhadores qualificados. “Para gerar um horizonte para a juventude que está sendo formada, é preciso haver uma base produtiva sofisticada, que demande trabalho dos jovens. Caso contrário, veremos profissionais ultra qualificados em empregos vis, sem qualquer tipo de direito”, afirma.

“A falta de perspectiva de fornecimento é, sem dúvidas, o centro do problema atual.
O grande fantasma na indústria é investir no desenvolvimento do IFA sabendo que, após fase 3 da PDP, se não houver segurança jurídica garantida pelo marco regulatório, não é possível fornecer IFA nacional aos laboratórios oficiais”

Sergio Frangioni

Ele ressalta que o segmento é complexo e completo, que precisa de integrantes competentes em todos os níveis, do técnico ao de alta qualificação. “O CEIS gera, hoje, 25 milhões de empregos diretos e indiretos. Em empregos diretos, são nove milhões. É importante não haver escolhas binárias, entre ensino básico e pós-graduação. O CEIS precisa de todo o espectro educacional. Sem técnicos não há produção em saúde. Sem doutores, não há inovação”. Frangioni também diz que o sucesso na ampliação de investimentos em inovação, pesquisa e novas tecnologias também depende da capacitação de recursos humanos. “São necessários mais incentivos e recursos disponíveis para bolsas de pesquisas, além de práticas que continuem fortalecendo a parceria entre universidade e indústria”.

Otimismo não falta ao senador Ogari Pacheco. Segundo ele, o PL 1505/22 tem o mérito de proporcionar uma legislação específica para o CEIS, que permitirá particularizar o atual regramento jurídico brasileiro para as necessidades do setor de saúde, em especial as do SUS. “O projeto cria o Diálogo Competitivo e o Contrato Público para Solução Inovadora (CPSI) especificamente para o setor de saúde, instrumentos que serão usados para promover o desenvolvimento da sociedade e da economia, favorecendo o Sistema Nacional de Inovação em Saúde. Um arcabouço legal mais abrangente e específico para o CEIS representa uma declaração ampla e transparente de que a inovação é parte integrante da estratégia de desenvolvimento do Estado”.

Carlos Gadelha acredita que o Brasil está diante de uma grande janela de oportunidade para ser inovador, garantindo à sua população o acesso universal e igualitário a medicamentos e tratamentos. “As empresas de química fina e medicamentos deveriam perceber a oportunidade de contribuir decisivamente para o CEIS, assumindo um compromisso com a saúde da população e com o desenvolvimento de um sistema econômico e produtivo que será o mais importante do mundo no século XXI e que já representa 10% do Produto Interno Bruto (PIB). Elas devem se inserir em uma grande estratégia nacional de desenvolvimento do País, um modelo diferente de desenvolvimento, calcado na inovação, na produção nacional e na sustentabilidade ambiental”

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