REVISTA FACTO
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Jul-Ago 2008 • ANO II • ISSN 2623-1177
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//Artigo

Patentes e defesa da concorrência: uma equação difícil

O III Seminário Internacional de Patentes, Inovação e Desenvolvimento – SIPID evoluiu na reflexão sobre o equilíbrio entre proteção de patentes e defesa da concorrência e debateu novos problemas, como a estratégia do primeiro mundo de engajar as alfândegas no enforcement da propriedade intelectual.

Na mesa de abertura do Seminário, realizado nos dias 19 e 20 no Centro de Convenções da Firjan (RJ) todo o Mercosul estava representado, numa demonstração do papel agregador que o Brasil vem cumprindo no continente e também da preocupação dos países latino-americanos com a migração do tema da propriedade intelectual para a OMC. Os eventuais obstáculos que uma visão puramente econômica desse tema poderão impor ao desenvolvimento das nações economicamente mais frágeis têm sido uma preocupação crescente na América Latina – mais até noutros países do que no Brasil.

Outra grande preocupação do Mercosul tem sido a estratégia do governo norte-americano de estender o enforcement da propriedade intelectual à área aduaneira. Extrapolando os dispositivos de TRIPS, a Organização Alfandegária Mundial criou “leis-modelos” que conferem à autoridade aduaneira poderes para bloquear o trânsito de mercadorias consideradas não conformes com os acordos patentários internacionais. O assunto foi detalhado na apresentação de Viviana Muñoz Tellez, da organização South Centre.

Competição e inovação

O professor Mario Cimoli, gerente da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), abriu a primeira sessão do Seminário, dedicada aos aspectos econômicos da propriedade intelectual (PI), afirmando que um assunto prioritário da agenda da Cepal é o incentivo ao acúmulo de capacidades tecnológicas frente aos entraves representados pelos mecanismos de apropriação de direitos intelectuais. Em sua opinião, os países latino-americanos ainda não assimilaram inteiramente o novo paradigma da sociedade do conhecimento.

Para Ronaldo Fiani, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o desenvolvimento da indústria nacional depende de uma política integrada de patentes e defesa da concorrência. Esses dois elementos foram historicamente tratados de forma articulada pelas leis do Japão, União Européia e, em especial, EUA. Em todos os casos, buscou-se um modelo de desenvolvimento próprio, alinhado com os objetivos específicos de cada país, mas sempre tendo em vista uma articulação profunda entre defesa da concorrência e propriedade intelectual visando manter a competitividade de suas indústrias.

Para comprovar sua tese, Fiani mostrou que as estratégias para a defesa e a promoção da concorrência nos Estados Unidos mudaram radicalmente ao longo do tempo. Até a década de 70, as decisões judiciais naquele país tinham um viés anticoncentrador e puniam iniciativas das empresas que pudessem gerar assimetria em relação aos concorrentes. Em 1982 essa visão se inverteu, com a predominância de uma orientação favorável aos processos de fusão e aquisição. Em contrapartida, no mesmo ano os EUA passaram a proteger suas empresas contra acusações de práticas anticompetitivas movidas por outros países.

Diferentemente do que ocorreu nos países desenvolvidos, no Brasil a Lei 8.884, que instituiu o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, e a Lei 9.279, que regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial, ambas sancionadas no âmbito da reforma institucional dos anos 90, tiveram o objetivo de adequar o sistema nacional aos padrões internacionais – ou seja, aos interesses dos países desenvolvidos. Segundo Fiani, equivocadamente essas leis foram criadas de forma desarticulada e pouco se discutiu o fato de serem mecanismos em princípio contraditórios, que devem ser acionados conforme necessidades específicas: enquanto a proteção de patentes cria monopólio temporário, a defesa da concorrência visa combater tentativas de monopolização. Para ele, o Brasil tratou apenas de criar um marco legal homogêneo que desse segurança e rentabilidade ao investimento estrangeiro no país.

Fiani argumentou que o nível de proteção e os setores econômicos a que ela se destina devem ser analisados caso a caso para atender às necessidades de desenvolvimento tecnológico de cada país. O Japão, hoje situado entre os mais inovadores, adotou no início do século 20 um sistema de patentes voltado para a aquisição de tecnologia, difusão de informação doméstica e inovação incremental, ou seja, uma política de propriedade intelectual coerente com a sua posição de coadjuvante naquele momento.

De acordo com a teoria apresentada pelo professor, os direitos de propriedade intelectual expressos em patentes seguem uma curva em U. Ela é descendente quando o desenvolvimento econômico chega a níveis intermediários, dado que nessa fase a competição está focada na imitação e não há, portanto, interesse nos mecanismos de proteção. E passa a ser ascendente quando se atinge um nível de desenvolvimento mais elevado, pois nessa fase o acúmulo de capacidades tecnológicas e a demanda por melhores padrões de qualidade tornam as empresas mais interessadas na proteção dos direitos de propriedade intelectual.

Essa perspectiva expõe uma incoerência dos argumentos pós-TRIPS. “O problema da curva em U é que ela nos leva à conclusão incômoda de que a aceleração do desenvolvimento, quando este se encontra em um patamar intermediário, exige o relaxamento da proteção de patentes e não o rigor”, explica Fiani, lembrando que “durante a negociação de TRIPS afirmou-se que os EUA conseguiram se desenvolver graças à forte proteção de patentes desde o início. Porém, omite-se o fato de que durante quase 50 anos elas só eram concedidas para residentes”.

Mesmo os EUA, até meados do século passado, criticavam o caráter monopolizador das patentes e o combatiam com medidas antitruste. Só a partir dos anos 80 as discussões mudaram de rumo, a medida em que a agressiva retomada de crescimento da Europa e do Japão após a Segunda Guerra passou a ameaçar a liderança econômica daquele país. A cientista política Susan Sell, professora da George Washington University e autora de livros sobre patentes e TRIPS, atribuiu a crença dominante em um padrão único de desenvolvimento à falsa correlação que se estabelece entre os investimentos externos e a riqueza econômica dos EUA e sua suposta política de forte proteção à propriedade intelectual privada. Ela lembra que as patentes foram freqüentemente usadas, ao longo da história, como instrumentos de políticas públicas para o incentivo à inovação.

Por outro lado, a obtenção de patentes passou a ser usada, em muitos casos, para deliberadamente bloquear o ímpeto inovador do mercado e eliminar a concorrência. Para ilustrar essa tese Susan Sell desmistifica ninguém menos do que o ícone Thomas Edison, garantindo que ele, embora nem sequer tenha sido o primeiro autor de inúmeras invenções que lhe foram atribuídas, dominou o mercado através de patentes de baixa qualidade e litígios judiciais, numa estratégia articulada pela empresa de telégrafos Western Union.

A generalização de práticas como essa já está provocando, segundo a professora, certo desinteresse no desenvolvimento de novas tecnologias nos EUA. Quando o USPTO aceita patentear, por exemplo, um sanduíche de pasta de amendoim, a patente perde relevância como instrumento de estímulo à invenção genuína e o sistema como um todo se precariza. A precariedade, segundo Susan, estende-se à própria estrutura do USPTO, que hoje sofre com a insuficiência de profissionais e orçamento diante da demanda.

Susan chamou a atenção, também, para a manobra dos Estados Unidos de colocar pirataria e proteção de patente em uma mesma categoria no Acordo Comercial AntiFalsificação (a sigla em inglês é ACTA), cuja negociação está em curso no âmbito da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O objetivo, segundo ela, seria restringir as importações de certos produtos pelos 

países mais desenvolvidos, em especial no setor farmacêutico.

Os episódios de licenciamento compulsório de medicamentos no Brasil e na Tailândia são tomados, por essa corrente, como exemplos de estímulo à falsificação. Porém, como a questão é mais complexa, há uma certa resistência entre alguns países do próprio primeiro mundo contra esta orientação. A indústria de genéricos da Europa, por exemplo, tenta excluir a violação de patentes do ACTA para evitar qualquer tipo de confusão entre genéricos e remédios falsificados.

A firme postura dos europeus frente à pressão norte-americana pode servir de exemplo e estímulo para que o Brasil adote políticas públicas mais condizentes com os interesses nacionais. Na visão do debatedor Marcelo Varella, assessor da Casa Civil, o país deve buscar o “ponto ótimo” da propriedade intelectual traduzindo-o em sua legislação em função do nível de desenvolvimento atual e dentro das margens de manobra de TRIPS. Segundo ele, a Lei de Inovação, considerada por si só um avanço, não apresentou resultados positivos. No triênio anterior à sua aplicação, 322 patentes foram registradas no Brasil, enquanto no último triênio foram somente 288 – ou seja, houve uma redução de 13%.

No setor agrícola, a Secretaria de Direito Econômico (SDE) e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) já interferem em alguns casos de concentração de mercado por meio de instrumentos de direito privado, e se discute uma atuação mais ampla desses órgãos no âmbito de uma política antitruste. Varella comentou, porém, que ainda é baixa a efetividade das decisões do Cade em função do elevado índice de liminares judiciais contrárias, o que indica uma baixa sensibilidade do Poder Judiciário às questões envolvendo concentração de mercado.

O espaço das flexibilidades

Na segunda sessão do SIPID, que contemplou aspectos jurídicos da PI, o embaixador do Chile no Brasil, Alvaro Díaz, analisou os desafios de políticas públicas surgidos após a assinatura de tratados de livre-comércio assinados pelos Estados Unidos com dez países da América Latina – os conhecidos acordos bilaterais. Esses acordos foram formalizados em contratos incompletos, pois não detalham todas as cláusulas, deixando “silêncios” e ambigüidades. Se por um lado isto cria espaço para flexibilidades, por outro gera uma intensa atividade política em torno da sua implementação. Díaz, que foi negociador do acordo bilateral do Chile com os EUA, apontou seu país como o que mais resiste à pressão para aderir a cláusulas desfavoráveis impostas pelos EUA. A principal questão negociada, no caso chileno, foi a proteção da informação na divulgação de novas entidades químicas.

As alterações nas leis e decisões judiciais norte-americanas têm repercutido no resto do mundo. Foi o que aconteceu, segundo Díaz, quando a bancada democrata mudou algumas seções unilateralmente desde que os EUA estabeleceram tratados de livre-comércio com Colômbia, Peru e Panamá, o que resultou no relaxamento, para esses países, das exigências e obrigações em matéria de patentes de medicamentos. O impacto dos tratados de livre-comércio dependerá da implementação legislativa e regulatória e da agenda complementar de cada país. Díaz chama a atenção para o fato de que diversos países estão patenteando sem necessidade, mesmo quando não existe a exigência em TRIPS ou nos tratados. Por exemplo, enquanto a Nicarágua aprovou o patenteamento de vegetais, no Chile a matéria foi recusada. Para Alvaro Díaz seria importante, em especial no setor de fármacos, que os países da América Latina limitassem a matéria patentária, além de estar atentos a oportunidades que surgem no cenário internacional.

O professor Frederick Abbott, da Florida State University, afirmou que o grupo de países conhecido como BRIC, que inclui o Brasil, tem feito uma pressão “de baixo para cima”, mesmo que ainda timidamente, para obter avanços estratégicos no âmbito dos tratados bilaterais e regionais. A China apresenta claro interesse em proteger sua medicina tradicional através de patentes. Em 2007, recebeu 694 mil pedidos de patenteamento, muitos de inventores nacionais, superando os EUA e Japão, exceto no segmento de modelos de utilidade. A Rússia tem força em biotecnologia e a Índia em fármacos. O Brasil, por sua vez, pode se tornar o líder do setor de energia verde, na opinião do professor. Ele aposta que as empresas brasileiras pedirão patentes, mas considera que ainda é uma grande incógnita como o país tratará o acesso a essas tecnologias quando estrangeiros vierem bater à nossa porta para requisitar licenças.

Abbott questionou o tão propalado projeto de harmonização de patentes. Segundo ele, as negociações travadas nas organizações multilaterais estão longe de chegar a bom termo. A Indonésia, por exemplo, desistiu há alguns anos de aderir a normas estabelecidas para certos vírus e decidiu exercer seus direitos soberanos sobre esse conhecimento. Já os países em desenvolvimento pleiteiam a divulgação da origem do material genético objeto de patentes biotécnicas, o que contraria os interesses norte-americanos nessa área.

O professor prevê que, no caso dos BRIC, a combinação de crescimento do PIB com o da renda da população e dos investimentos em inovação deverá aumentar o interesse no patenteamento, inclusive no mercado internacional. Porém, se os países mantiverem uma postura de não-reciprocidade, buscando o patenteamento no exterior e restringindo-o internamente, podem não resistir à contrapressão da OCDE. E a cobrança quanto à harmonização tenderá a continuar.

Para analisar as peculiaridades da pesquisa biogenética e a questão dos requisitos de origem, o SIPID convidou o especialista Pierluigi Bozzi, professor da universidade romana La Sapienza. Ele descreveu a dinâmica desse setor como algo complexo, que envolve uma delicada interação entre experimentos de laboratório, pesquisas de campo, recursos naturais e sistema de conhecimento tradicional das comunidades locais. Para Bozzi, esses elementos da cadeia de valor da biotecnologia são inseparáveis e devem ser protegidos. Intervir na etapa final do processo de produção por meio de patentes é necessário, mas não suficiente. Segundo ele, a falta de transparência quanto à origem do produto vem prejudicando o equilíbrio da cadeia de suprimento da pesquisa genética.

“Antes de se pensar em proteger o puro interesse econômico de cada país, é necessário rastrear e identificar a origem da pesquisa genética para permitir que o país envolvido possa assumir a responsabilidade pelo conhecimento e gestão daquele componente biológico específico”, afirmou Bozzi. Ele explica que, internacionalmente, discute-se a revelação da origem como uma obrigação de TRIPS, mas há outras propostas que consistem, por exemplo, em arranjos contratuais em prol dos beneficiários, no uso de bases de dados em conexão com o sistema da OMPI ou na certificação de origem da pesquisa genética independente do pedido de patente. O professor, no entanto, critica essas sugestões por considerar que seus efeitos se concentrariam apenas na etapa final de todo o processo de pesquisa científica.

A evolução do enforcement da propriedade intelectual, tema de intermináveis polêmicas, também ganhou destaque na segunda sessão do seminário. Viviana Muñoz Tellez, representante da organização intergovernamental dos países emergentes South Centre, enfocou os crescentes esforços dos países do primeiro mundo para interferir de maneira mais direta na condução do enforcement.

Tellez lembrou que a OMC mantém um comitê especial para tratar das disposições no âmbito do TRIPS, mas que não há uma exigência explícita junto aos países-membros para modificarem suas leis e alocarem recursos de forma a cumprir suas obrigações. “O que se exige é um empowering das autoridades para cuidar dessas obrigações, algumas compulsórias e outras não”, explicou. Um exemplo é a não-obrigatoriedade da aplicação das medidas de fronteira, tema que vem gerando enorme controvérsia.

No entanto, segundo Tellez, a Organização Alfandegária Mundial criou leis-modelos orientando a aplicação de leis alfandegárias em concordância com o TRIPS e TRIPS Plus. Na mesma linha do Tratado Antipirataria proposto pelo EUA, essas leis-modelos estabelecem que a autoridade alfandegária, além de atuar no combate à contrafação e à pirataria, teria poderes de julgar se determinada carga está condizente com acordos patentários. E mais: teria poderes sobre bens em trânsito, exportações e importações. “O problema é que, quando conferimos às autoridades alfandegárias o poder de interromper o fluxo de bens em um país, estamos entrando em uma área comercial. Talvez isso possa criar obstáculos comerciais inconsistentes com TRIPS”, explicou.

O desembargador André Fontes, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, abordou a evolução jurídica do sistema de patentes em nível nacional. Segundo ele, este é um dos grandes temas nacionais sobre cuja constitucionalidade o Supremo Tribunal Federal ainda não se pronunciou. A matéria patentária, para Fontes, tem de ser confrontada com a Constituição, especialmente nos tópicos “interesse social”, “desenvolvimento econômico” e “desenvolvimento tecnológico”. Não há, no entanto, nenhuma decisão nesse sentido.

O cenário que temos hoje no Judiciário, segundo Fontes, “é a propriedade intelectual vista como um fim em si mesma, como um bem apropriável sem nenhum valor social”. Ele afirma que o Brasil está longe de atingir um equilíbrio nessa matéria e lamenta, por exemplo, que as decisões judiciais brasileiras não discutam a fundo o problema da retribuição. Ao contrário, a passividade é evidente, a ponto de alguns tribunais já terem aceito discutir patentes apresentadas em alemão, o que demonstra o total descaso com o conteúdo da informação. Na opinião de Fontes, a propriedade intelectual no Brasil é hierarquizada de forma perversa, ou seja, os interesses dos países desenvolvidos são tratados em um patamar mais alto. A biopirataria, lembra ele, pouco é discutida, embora seja um assunto que nos afeta mais diretamente, enquanto a agenda permanece focada na proteção de marcas e de patentes.

A desembargadora Liliane Roriz, também do TRF da 2ª Região, destacou que o interesse social envolvido na questão patentária tem sido discutido até nos Estados Unidos, em que pesem os interesses comerciais dos grandes laboratórios sediados naquele país. Ela conta que participou, há alguns meses, de um seminário em Washington onde diversos parlamentares democratas se manifestaram abertamente em favor do equilíbrio entre patentes farmacêuticas e o acesso da população aos medicamentos.

Alternativas de retribuição

A advogada Judit Rius Sanjuan, da organização Knowledge Ecology International, revelou um dado alarmante em sua palestra ao abrir a terceira sessão do SIPID, dedicada aos aspectos sociais da PI. Dos mais de mil novos medicamentos aprovados pela Food and Drug Administration (FDA) nos EUA entre 1989 e 2000, 76% não tinham nenhum benefício terapêutico em relação às drogas já existentes e apenas 1% era destinado a doenças negligenciadas. “Este é um problema decorrente do sistema baseado em monopólio”, sentenciou. Em sua opinião, tentar recuperar o investimento das empresas em pesquisa e desenvolvimento com uma política de preços elevados conduz ao desenvolvimento de inovações distantes do interesse público. A tendência é que as empresas se voltem para aquelas que o consumidor poderá pagar.

Separar o mercado da inovação do mercado de produtos é, segundo a palestrante, a melhor forma de conciliar esses interesses. Para ela, seria possível remunerar as empresas e, ao mesmo tempo, assegurar o acesso da sociedade, através de modificações nos mecanismos de incentivo Pull, que são aqueles destinados a recompensar inventos bem-sucedidos. Hoje o mais utilizado é a concessão de exclusividade de mercado. Judit defende o que chama de “prêmios” como meio alternativo de remunerar o inventor sem aumentar preços e reduzir a concorrência. Em resumo, seria “transformar a patente de um direito à exclusão para o direito a ser remunerado”.

Dentro desse raciocínio a concorrência dos genéricos seria permitida desde o primeiro dia, como aconteceu no Brasil, lembrou Judit. Outra vantagem seria relacionar o prêmio a um objetivo específico, inibindo o patenteamento de inovações desvinculadas do interesse público. Alguns mecanismos apontados seriam as exceções de remuneração aos direitos exclusivos, que é um artigo de TRIPS; as licenças compulsórias e voluntárias e mecanismos de gestão coletiva dos direitos de propriedade, através de agências de licenciamento.

Existem vários formatos possíveis para esses prêmios, segundo Judit. Pesquisa do Knowledge Ecology International identificou cerca de 300 tipos de prêmios atribuídos a inovações já no século XVIII e constatou que, desde o início da atual década, houve um aumento no uso desse mecanismo, em especial para tecnologia verde, aviação e setor agrícola. Até os EUA chegaram a elaborar uma proposta nesse sentido. Tramita no Congresso norte-americano o US Medical Innovation Prize Fund, que prevê a criação de um fundo com recursos iniciais de US$ 80 bilhões por ano. A premiação seria baseada em diversos fatores, com ênfase nos benefícios da inovação diante dos produtos e tecnologias já existentes. A proposta determina que 4% dos recursos sejam aplicados em doenças negligenciadas, 4% para doenças infecciosas e 10% para drogas órfãs (medicamentos para doenças raras).

Judit também chamou a atenção para uma série de flexibilidades encontradas na Seção 3 de TRIPS, relacionadas ao enforcement e que definem compensações automáticas para qualquer tipo de violação à propriedade intelectual. Nessa parte do Acordo encontra-se o artigo 44, que permite o uso da licença compulsória por um governo mediante o pagamento de remuneração adequada. A advogada contou que, na Índia, a Roche moveu uma ação contra a empresa Sipla, que estava violando o direito de patente sobre um fármaco. Apesar da culpa flagrante da companhia indiana, o tribunal indiano permitiu que esta continuasse a produzir o medicamento e estipulou o pagamento de uma compensação financeira pelos danos causados à Roche.

A palestrante lembra que países-membros de TRIPS podem limitar as penalidades referentes a ações em julgamento à compensação ao titular da patente quando o mandado de segurança for inconsistente com a lei do país em questão. Trata-se de uma flexibilidade que permite a aplicação das licenças compulsórias pela via judicial. Também citou o artigo 45 de TRIPS, que dá liberdade às autoridades judiciais dos países para definir o que entendem como compensação adequada por violação da propriedade intelectual. “Acho que existe flexibilidade suficiente no sistema; só não sei se ela ficou esquecida ou foi negligenciada”, comentou Judit.

De acordo com Nuno Pires de Carvalho, da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), várias dessas flexibilidades, se bem traduzidas nas leis dos países, podem melhorar o acesso da população aos medicamentos. Ele estabelece três fases em que isso pode acontecer, sendo a primeira relacionada aos requisitos formais exigidos para a emissão do direito de propriedade intelectual. Pode-se pedir a descrição integral do fármaco e de seu processo de desenvolvimento. Junto a isso, determinar que essa informação seja adaptada ao nível de conhecimento dos técnicos locais, já que mais de 80% dos pedidos de patentes nos países em desenvolvimento vêm do Japão, Estados Unidos e Alemanha. Outro exemplo vem da lei norte-americana, segundo a qual a invenção resultante de financiamento público está sujeita a regras especiais de exploração que beneficiem a sociedade.

TRIPS também deixa brechas para que os países determinem o que é ou não invenção. Da mesma forma, não estabelece qualquer exigência relativa às diretrizes de exame dos pedidos de patentes, o que permite, por exemplo, que ele seja realizado por etapas e tenha parecer técnico de diferentes órgãos governamentais. A condição é só uma: “Não se pode atrasar pedidos de uma determinada área em favor de outra área. Fora isso, não há qualquer limitação”, explicou Carvalho.

Quanto à proteção de dados de testes, o palestrante da OMPI lembrou que o artigo 39.3 de TRIPS apenas estabelece requisitos mínimos. Menciona a proteção de entidades químicas sem mais detalhes, o que dá liberdade para os países não protegerem informações sobre usos, novas formulações e novas categorias, entre outras. Ainda assim, segundo Carvalho, a maioria dos membros da OMC criou sistemas de exclusividade para dados de testes. Até agora só os EUA recorreram ao sistema da remuneração direta, direcionado para os agroquímicos. Para liberar o registro do produto a um fabricante de genéricos, a autoridade sanitária exige o teste de bioequivalência e o pagamento de compensação em dinheiro ao titular da patente, mas dispensa a apresentação de dados clínicos e farmacológicos.

Ainda de acordo com o artigo 39.3, a proteção dos dados de testes deve ser proporcional aos esforços para obtê-los – isto é, dados que exigem grandes esforços podem ser protegidos por período mais longo, enquanto aqueles que exigem pouco esforço são protegidos por período mais curto ou simplesmente não são protegidos. Tal disposição foi recentemente incluída nos acordos dos EUA com o Peru e a Colômbia.

O segundo caminho apontado pelo representante da OMPI para o uso das flexibilidades se refere ao contingenciamento do direito de propriedade intelectual após a concessão da patente. Incluem-se aí as exceções e limitações, como licenças compulsórias, controle de preços, uso da informação de patente para fins de pesquisa e obtenção do registro sanitário, além da revogação de direitos, recurso que a Índia incluiu em sua lei de patentes. Na área dos dados de testes, TRIPS apenas se refere a dois tipos de proteção: contra a divulgação e contra o uso comercial desleal, cujo significado está aberto à interpretação de cada país.

Outras oportunidades e avanços na política de PI podem ser obtidos pelos países em desenvolvimento com a integração das agendas das organizações internacionais. Pedro Roffe, membro sênior do International Centre for Trade and Sustainable Development (ICTSD), destacou que, num mundo dinâmico, as deliberações internacionais em relação à propriedade intelectual extrapolam o âmbito da OMPI e da OMC, estendendo-se a instituições como, por exemplo, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Na atual configuração da Agenda para o Desenvolvimento da OMPI, percebe-se uma ligação com a estratégia global da OMS e a Declaração de Doha de 2001. Uma das importantes questões apontadas é o reconhecimento de que as negociações de propriedade intelectual precisam estar ligadas à promoção da saúde pública.

Em outubro de 2007, a Assembléia Geral da OMPI adotou 45 recomendações para a Agenda. As preocupações básicas giram em torno da promoção do acesso ao conhecimento, reforço do domínio público, transferência de tecnologia e políticas de competição. Roffe ressalta que o trabalho de fiscalização da implantação dessas recomendações, a cargo do recém-criado Comitê de Desenvolvimento e Propriedade Intelectual do órgão, acolherá os pontos de vista de organizações não-governamentais, de acordo com os princípios de neutralidade da OMPI. Ele acredita que ainda resta um longo trabalho pela frente para que a Agenda para o Desenvolvimento produza resultados reais e está convencido de que “o futuro desse processo dependerá da liderança que os países em desenvolvimento irão desempenhar”.

A debatedora Claudia Chamas, pesquisadora da Fiocruz, focou sua intervenção na questão do abuso de patentes e chamou a atenção para o fato de que, na área médica, têm havido reações contrárias até mesmo no primeiro mundo. Ela citou relatórios recentes, um norte-americano e um europeu, que apontam, por exemplo, uma queda na pesquisa de novos fármacos e conseqüências nefastas para o consumidor das estratégias de evergreening, polimorfos, segundos usos e outras relacionadas à blindagem de propriedade intelectual por parte dos laboratórios líderes de mercado.

O firme posicionamento do Brasil nas negociações internacionais sobre patentes foi o tema dos comentários da debatedora Juliana Vallini, advogada e consultora do Programa de DST/Aids. Segundo ela, graças a essa postura do governo brasileiro, respaldada na Agenda para o Desenvolvimento, foi possível realizar avanços como a entrada dos medicamentos genéricos no mercado de uma maneira rápida. A advogada mencionou também um guia com diretrizes para a análise de patentes farmacêuticas, criado pela OMS com base no conceito de interesse público, e destacou a atitude brasileira de resistir às pressões dos EUA no sentido de adotarmos a exclusividade de dados de testes, inexistente no país para o setor de medicamentos.

Como reconhecimento da importância de suas propostas para a saúde pública, o Brasil reuniu apoios desde a América Latina e Caribe até países africanos, Tailândia e Índia. “Conseguimos grandes avanços. Temos trabalhado em propostas e idéias de mecanismos alternativos, complementares ao sistema de patentes, que promovam o acesso aos medicamentos e a entrada de genéricos no mercado”, comemorou Juliana, com um apelo final para que outras organizações internacionais colaborem nessas ações em favor do desenvolvimento humano mundial.

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