Um bilhão de pessoas em todo o mundo sofrem com males que não têm a visibilidade e as mesmas possibilidades terapêuticas de outros problemas de saúde. As chamadas doenças negligenciadas (DNs) são um grupo de enfermidades infecciosas, muitas delas parasitárias, que afetam principalmente as populações de baixa renda localizadas em regiões tropicais ou subtropicais, causando mais de 1 milhão de mortes por ano. Os desafios, as possibilidades e as ações em andamento, em particular no Brasil, para reduzir a carga de DNs foram questões levantadas no webinar “Cenário das doenças negligenciadas – saúde, diagnóstico e acesso”, que a ABIFINA, com o apoio da Nortec Química, promoveu em 14 de abril.

Na data, é celebrado o Dia Mundial da Doença de Chagas, uma das DNs mais comuns nos trópicos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que até 7 milhões de pessoas estejam infectadas com o parasita Trypanosoma cruzi, a maior parte delas na América Latina, e que 75 milhões vivam em área de risco. Somente 7% dos pacientes têm acesso ao diagnóstico e 1%, ao tratamento, o que gera cerca de 10 mil mortes anuais por doença de Chagas, de acordo com a OMS.

“Este é um momento importante para que façamos uma reflexão sobre esse panorama de abandono para doenças que são tratáveis e curáveis”, disse, na abertura do webinar, o presidente executivo da ABIFINA, Antonio Carlos Bezerra, destacando que o evento procuraria levar ao público “o estado da arte com relação às doenças negligenciadas”.

Objetivo que começou a ser cumprido, com sobras, logo na primeira palestra. O epidemiologista Sergio Sosa-Estani, diretor executivo regional da Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla em inglês), foi além do escopo de sua apresentação, a América Latina, delineando um amplo quadro do tema. Segundo Sosa-Estani, a prevenção e o controle dessas doenças, que estão relacionadas à pobreza, requerem uma abordagem integral e multissetorial para reduzir o impacto negativo na saúde e no bem-estar.

“Na DNDi, nós evoluímos do conceito de doenças negligenciadas para populações negligenciadas”, comentou o epidemiologista, que reforçou o discurso do presidente executivo da ABIFINA. De acordo com Sosa-Estani, boa parte das 21 DNs estabelecidas pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) pode ser interrompida ou eliminada como problema de saúde pública, enquanto outras são passíveis de prevenção ou controle.

Um obstáculo para isso, na avaliação do diretor da DNDi, é a pouca oferta histórica de terapias para doenças negligenciadas. De 1975 a 1999, apenas 1,1% de cerca de 1,4 mil novos medicamentos foi dedicado às DNs, que, por sua vez, representaram 12% da carga global de doenças no período. Situação que se manteve nos anos seguintes e que levou, em 2003, à criação da Iniciativa, representada nas Américas pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

“Quando falamos da necessidade de ferramentas terapêuticas, temos um claro e lamentável diagnóstico de que ainda persiste um desequilíbrio fatal”, observou Sosa-Estani. “Somos uma organização que trabalha, com centenas de parceiros, na procura de novas alternativas terapêuticas. Até agora, conseguimos desenvolver nove tratamentos para seis doenças negligenciada”, acrescentou.

Dois desses nove medicamentos foram produzidos na e para a América Latina. Um deles, feito pelo Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco Governador Miguel Arraes (Lafepe), é a versão pediátrica do antiparasitário benznidazol, usado na doença de Chagas. O outro é o ASMQ, para malária, fabricado pelo Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos), associado da ABIFINA.

Mas os avanços nos últimos anos, para Sosa-Estani, não escondem a necessidade de melhorias, sobretudo para acelerar o diagnóstico da doença de Chagas. Uma possibilidade nesse sentido é o modelo “test & treat”, pelo qual dois testes rápidos seriam suficientes para confirmar a infecção e indicar o tratamento. Além disso, a DNDi está “trabalhando intensamente para tentar nomear novas entidades químicas [NEQs] este ano” – o portfólio da entidade conta com mais de 20 NEQs, que partiram de testes com cerca de 4 milhões de compostos.

“Precisamos simplificar e quebrar as barreiras que evitam o acesso ao tratamento. Não basta desenvolver um novo medicamento; ele tem chegar aos pacientes”, ressaltou o epidemiologista.

Diagnóstico complexo

Para que o Brasil possa seguir o lema do Dia Mundial da Doença de Chagas para este ano, “Ajude-nos a saber quantos somos e onde estamos”, é necessário diagnosticar e disponibilizar tratamento para a população. Essa foi a avaliação do farmacêutico bioquímico Fred Luciano Neves Santos, coordenador do Programa de Pesquisa Translacional em Doenças de Chagas (Fio-Chagas/Fiocruz Bahia), segundo palestrante do webinar. A apresentação focou os casos crônicos da enfermidade, que se concentram no México, no Brasil e na Argentina, responsáveis por 60% das ocorrências.

De acordo com Santos, de 30% a 40% dos pacientes na fase crônica vão desenvolver algum sintoma relacionado à doença de Chagas – cardíaco, digestivo ou ambos. Mas não é possível saber se a enfermidade, considerada silenciosa, vai evoluir para uma forma sintomática, devido à ausência de um marcador de evolução. Outro desafio é a falta de um critério de cura bem definido.

Entretanto, um dos pontos mais enfatizados pelo palestrante foi a complexidade do diagnóstico, que depende de infraestrutura laboratorial. Além de cara, a metodologia atual demanda pessoal bem treinado, refrigeração e preparação de reagentes, o que leva, muitas vezes, à demora na entrega dos resultados. As consequências, alertou Santos, incluem a necessidade de deslocamento por grandes distâncias, para chegar a uma cidade que tenha laboratório com infraestrutura para fazer os testes; atraso no início do tratamento, o que pode gerar complicações; estresse psicológico quanto aos resultados do exame; e até mesmo a perda do paciente.

“A gente quer que a população pobre, do interior do Brasil, tenha acesso ao diagnóstico”, afirmou o coordenador do Fio-Chagas. “É importante que o laboratório vá até essas pessoas, e não o contrário. Para isso, o teste deve ser de pronto atendimento, ou seja, feito na casa do paciente, sem a manipulação de reagente ou amostra biológica, sem refrigeração e de fácil aplicação, de modo que agentes comunitários de saúde, com certo treinamento, possam realizá-lo e interpretar o resultado”, complementou.

Santos detalhou projetos para a criação de novos testes e mostrou iniciativas que vêm contribuindo para ampliar o acesso ao diagnóstico e ao tratamento da doença de Chagas. Alguns deles são Quem Tem Chagas, do interior da Bahia; Expresso Chagas, projeto itinerante criado no Rio de Janeiro; IntegraChagas, de abrangência nacional; e Cuida Chagas, que tem o objetivo de eliminar a transmissão congênita na América Latina.

“A grande maioria dessas iniciativas visa ofertar um diagnóstico rápido, que possa ser executado na casa dos indivíduos, e também a educação da população”, explicou o farmacêutico bioquímico.

Produção nacional de medicamentos

O veterinário Francisco Edilson Ferreira de Lima Júnior, coordenador-geral substituto de Vigilância de Zoonoses e Doenças de Transmissão Vetorial do Ministério da Saúde (MS), fechou a mesa de palestrantes com as estratégias da pasta para enfrentamento das DNs. Lima Júnior concentrou a apresentação em nove doenças e agravos sob responsabilidade de sua área – todas, segundo ele, com programas de vigilância bem estabelecidos no MS.

Antes de abordar cada tópico, traçando detalhados perfis epidemiológicos das nove DNs, Lima Júnior apresentou um trabalho de 2017 que revela a maior ocorrência dessas doenças em áreas com altos índices de vulnerabilidade social, sobretudo as regiões Norte e Nordeste. O estudo, feito pelo próprio MS, também indica tendência e previsão de queda da detecção de doenças negligenciadas e das mortes por elas provocadas, embora ainda não se conheçam os impactos da pandemia nesses índices.

A exposição sobre as DNs começou com a doença de Chagas, que, de acordo com dados do Ministério da Saúde, afeta até 4,6 milhões de brasileiros. Atualmente, predominam casos crônicos, espalhados pelo País, decorrentes de infecções em décadas passadas e com alta carga de morbimortalidade. Já os casos agudos estão concentrados na região amazônica, associados a alimentos contaminados, de produção caseira ou artesanal, e a espécies silvestres infectadas pelo Trypanosoma cruzi.

“Visando o enfrentamento da doença de Chagas, nós temos três eixos principais: sustentabilidade da interrupção da transmissão vetorial, vigilância na região amazônica e vigilância de casos humanos, com especial atenção para a doença crônica”, contou Lima Júnior, lembrando, ainda, que em 2020 o MS incluiu a doença de Chagas crônica na Lista Nacional de Notificação Compulsória.

Entre as outras DNs abordadas na palestra, algumas, como a filariose linfática (elefantíase), a oncocercose e o tracoma, estão perto da erradicação no Brasil. Outras, no entanto, apesar da redução do número de casos, estão longe de serem eliminadas como problemas de saúde pública. É o caso, por exemplo, da esquistossomose, que ainda tem áreas endêmicas no País.

Lima Júnior encerrou a palestra apresentando duas estratégias de enfrentamento transversais do Ministério da Saúde para as DNs. A primeira é uma chamada pública de 2021, em parceria com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), que destinou quase R$ 51 milhões para pesquisas sobre o tema. A outra é um projeto com a Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Oficiais do Brasil (Alfob) para produção nacional de medicamentos para doenças negligenciadas.

“É papel do governo fomentar (iniciativas) para acabar com essa assimetria de interesse que existe em investigar e produzir muito mais para doenças que não são aquelas que acometem as populações mais pobres”, reconheceu.

União de forças

A fim de repercutir os temas abordados nas palestras, foram convidados Marcus Soalheiro, vice-presidente da Nortec Química, e Aila Karla Mota Santana, pesquisadora do Lafepe. Soalheiro, que é presidente do Conselho Administrativo da ABIFINA, iniciou o debate parabenizando as apresentações, que definiu como “aulas”, pois abordaram as mais diversas iniciativas sobre doenças negligenciadas – globais, nacionais, públicas, privadas, com participação da academia e de associações.

Como engenheiro químico e representante da indústria farmoquímica, ele destacou a importância dos números relativos às DNs, sobretudo à doença de Chagas. Dessa forma, de acordo com Soalheiro, os fornecedores internacionais poderão se programar e enviar o Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) necessário para a produção das drogas.

“Não existe uma torneira mágica da qual saiam as substâncias necessárias para fazer os medicamentos. A indústria precisa de previsibilidade”, ponderou o executivo da Nortec, que conclamou a criação de um grande projeto nacional para “eliminar, minorar ou mitigar as doenças negligenciadas”. “Uma vez definida uma demanda, uma continuidade política, a produção nacional vai aparecer, em boas condições de qualidade e custo”, garantiu.

Representante do único laboratório nacional produtor de benznidazol, Aila Santana lamentou a disparidade entre o número de pessoas acometidas por doença de Chagas e a quantidade de diagnósticos. Ela relatou que, por falta de demanda, a fabricação da droga vem diminuindo.

“A gente que está na ponta, que sabe da capacidade produtiva, aguarda que o volume (de pacientes para tratamento) chegue, que os números aumentem. O diagnóstico e o acesso ainda são grandes desafios”, observou.

Aila também informou que hoje o Lafepe é 100% voltado aos programas do Sistema Único de Saúde (SUS). Em parceria com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e o Ministério da Saúde, o laboratório desenvolve o primeiro medicamento para hanseníase registrado no País.

Para Fred Santos, a mensagem final do webinar é a necessidade de sinergia entre a academia, o governo e a indústria.

“O sinergismo é fundamental para que possamos avançar e beneficiar a população que precisa de tratamento”, concordou Antonio Carlos Bezerra, que colocou “a cooperação e o afinco” da ABIFINA à disposição do Ministério da Saúde para a formulação de políticas públicas em doenças negligenciadas.

Aprovação do público

Enquanto palestrantes e debatedores discorriam sobre os desafios e as oportunidades para ampliar o acesso ao diagnóstico e ao tratamento das DNs, o público se manifestava com mensagens. A aprovação ao webinar foi unânime.

Jorge Magalhães, de Farmanguinhos, destacou a pertinência do tema. Taynara, da Universidade Federal do Ceará (UFC), parabenizou a ABIFINA pela organização do evento. E José Eduardo Pessoa de Andrade preferiu agradecer,. “Obrigado aos organizadores, palestrantes e debatedores pela qualidade do evento, que deve contribuir para diminuir o distanciamento técnico-científico e organizacional, o que pode contribuir para (.) resultados mais positivos no caso das doenças tropicais negligenciadas. Parabéns a todos e todas”, escreveu.


Assista ao webinar na íntegra.